ESCRITORES

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Uma visão crítica e bem-humorada do modo de vida no Brasil - André Sant'Anna

Em O Brasil é bom, com uma visão crítica e irônica, André Sant'Anna escreve 22 contos fazendo uma releitura pop da vida brasileira. 
"As narrativas que compõem o volume fazem uma instigante releitura de vozes que povoam nosso cotidiano, cheio de opiniões, não raro, marcadas pela repetição de estereótipos difundidos das mais diversas formas: programas jornalísticos ou humorísticos, canções, telenovela, comentários postados na web, como vemos em "Comentários na rede sobre tudo o que está acontecendo por aí", "Felicidade", "Amando uns aos outros". Com os ouvidos e olhos atentos, André seleciona elementos de um vasto repertório e os combina em textos que oscilam entre a fina ironia e a mais ferina sátira aos tempos em que vivemos, passando também por momentos em que a delicadeza se deixa surpreender de modo inusitado, como no conto "Só", do qual foi selecionado o trecho abaixo."
Por Susana Souto, em [Obra Aberta], Revista Língua Portuguesa, Edição - 110.

Para ler o texto completo, acesse:

Para ler excelente resenha sobre a obra, acesse:
[www.revistaamalgama.com.br/06/2014/o-brasil-e-bom-andre-santanna]

Para ler um trecho, acesse: [www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php]

Trecho do Conto - "Só"

A oração interrogativa 
estabelece um diálogo com o leitor e o convida a refletir sobre a centralidade do dinheiro, no mundo contemporâneo, valorizado mais do que saúde, paz, amor, nos votos de fim de ano, festa de grande valor simbólico.
"No último réveillon, quantas pessoas desejaram dinheiro para você? 
Você está só porque ninguém se interessa pelos seus problemas, pela sua solidãopelo seu dinheiro que você não tempela sua solidão intransponível, pelas injustiças que vivem acontecendo na sua vida, na vida.
Você está só porque a imagem de uma criança toda queimada, toda suja de lama numa maca cheia de moscas voando ao redor, é apenas uma imagem na televisão, patrocinada por um banco que finge ser seu amigo, finge estar à sua disposição no momento em que você mais precisar dele, aquele banco legal, aquele banco amigão.
Você está só porque tem dinheiro.
Você está só porque não tem dinheiro.
Você está só por causa do dinheiro.
Só dinheiro.
Só."





















(SANT'ANNA, André. O Brasil é bom. São Paulo: Cia. das Letras, 2014, p. 58)
Repetida exaustivamente, a afirmação "você está só" atua como espinha dorsal do conto, que aborda a incontornável solidão do homem contemporâneo. Ao mesmo tempo, reforça a proximidade entre o narrador anônimo e o "você", também indefinido, imagem do leitor a quem o narrador se dirige.
Ao longo desse parágrafo, aparece duas vezes repetida a palavra "solidão", uma delas, inclusive, qualificada pelo adjetivo "intransponível", o que a torna ainda mais dolorosa e inevitável.
Nesse trecho, o pronome possessivo "seu" não remete à posse, mas ao contrário, à ausência de posse, já que se trata, contraditoriamente, do "seu dinheiro que você não tem". 
 Inicialmente, a palavra "vida" está circunscrita ao indivíduo não nomeado a quem o narrador atribui "sua vida"; no entanto, no fim do período, amplia-se o seu significado e "vida" passa a englobar um sentido mais amplo e coletivo.
O discurso publicitário - que é também incorporado na repetição persuasiva da afirmação "você está só" - é aqui referido de modo explícito, quando o conto expõe os bastidores do mundo da notícia, patrocinado pelo banco, ironicamente, qualificado como "legal" e "amigão", que apenas "finge", verbo repetido duas vezes, se interessar pela vida dos clientes.
Nos parágrafos finais, a narrativa em prosa se aproxima da tessitura do poema. Mantém-se o uso da anáfora, com a repetição de "você está só", e variação apenas da segunda parte do sintagma, com pequenas variações: afirmação, no primeiro, negação no segundo e mudança do conectivo, no terceiro.
Apaga-se o pronome "você" e acentua-se a exclusividade do dinheiro como único elemento importante no mundo, na vida, "só dinheiro", enfatizando o processo de reificação, típico de uma sociedade de consumo. Por fim, numa espécie de degradação, apaga-se a palavra "dinheiro" e resta apenas "só", indicando a circularidade da narrativa. A solidão é uma espécie de círculo do qual não podemos escapar? - indagamos, entre tristes e esperançosos. 


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